sexta-feira, 24 de junho de 2011

Poema de Cecília Meireles

Este poema me faz lembrar da pessoa que mais amei na minha vida e quero dividi-lo com vocês:

Minha primeira lagrima caiu dentro dos teus olhos.
tive medo de a enxugar:para não saberes que havia caído.
No dia seguinte, estava imóvel, na tua forma definitiva,
Modelada pela noite, pelas estrelas, pelas minhas mãos.
Exalava-se de ti o mesmo frio do orvalho: a mesma claridade da lua.
Vi aquele dia levantar-se inutilmente para as tuas pálpebras,
E a voz dos pássaros e a das águas correr,
Sem que a recolhessem teus ouvidos inertes.
Onde ficou teu outro corpo? Na parede? Nos móveis? No teto?
Inclinei-me sobre o teu rosto, absoluta, como um espelho.
E tristemente te procurava.
Mas também isso foi inútil como tudo mais.

Neste mês, as cigarras cantam
E os trovoes caminham por cima da terra,
Agarrados ao sol.
Neste mês, ao cair da tarde, a chuva corre pelas montanhas,
E depois a noite é mais clara,
E o canto dos grilos faz palpitar o cheiro molhado do chão.
Mas tudo é inútil,
Porque os teus ouvidos estão secos como as conchas vazias,
E a tua narina imóvel
Não recebe mais noticia
Do mundo que circula no vento.
Neste mês, sobre as frutas maduras cai o beijo áspero das vespas...
E o arrulho dos pássaros encrespa a sombra,
Como água que borbulha.
Neste mês, abrem-se cravos de perfume profundo e obscuro;
A areia queima, branca e seca
Junto ao mar lampejante:
De cada fronte desce uma lagrima de calor.
Mas tudo é inútil,
Porque estás encostada à terra fresca,
E os teus olhos não buscam mais lugares
Nesta paisagem luminosa,
E as tuas mãos não se arredondam já
Para a colheita nem para a carícia.
Neste mês, começa o ano, de novo,
E eu queria abraçar-te.
Mas tudo é inútil:
Eu e tu sabemos que é inútil que o ano comece.

Minha tristeza é não poder mostrar-te as nuvens brancas,
E as flores novas, como aroma em brasa,
Com suas coroas crepitantes de abelhas.
Teus olhos sorririam,
Agradecendo a deus o céu e a terra:
Eu sentiria teu coração feliz
Como um campo onde choveu.
Minha tristeza é não poder acompanhar contigo
O desenho das pombas voantes,
O destino dos trens pelas montanhas,
E o brilho tênue de cada estrela
Brotando á margem do crepúsculo.
Tomarias o luar nas tuas mãos,
Fortes e simples como as pedras,
E dirias apenas: “Como vem tão clarinho!”
E nesse luar das tuas mãos se banharia a minha vida,
Sem perturbar sua claridade,
Mas também sem diminuir minha tristeza.

Escuto a chuva batendo nas folhas, pingo a pingo.
Mas há um caminho de sol entre as nuvens escuras.
E as cigarras sobre as resinas continuam cantando.
Tu percorrerias o céu com teus olhos nevoentos,
E calcularias o sol de amanha,
E a sorte oculta de cada planta.
E amanha descerias toda coberta de branco,
Brilharias à luz como o sal e a canfora,
Tomarias nas mãos os frutos do limoeiro, tão verdes,
E entre o veludo da vinha verias armar-se o cristal dos bagos.
E olharias o sol subindo ao céu com asas de fogo.
Tuas mãos e a terra secariam bruscamente.
Em teu rosto, como no chão,
Haveria flores vermelhas abertas.
Dentro do teu coração, porem, estavam as fontes frescas,
Sussurrando.
E os canteiros viam-te passar
Como a nuvem mais branca do dia.

Um jardineiro desconhecido se ocupara da simetria
Desse pequeno mundo em que estas.
Suas mãos vivas caminharam acima das tuas, em descanso,
Das tuas que calculavam primaveras e outonos,
Fechadas em sementes e escondidas na flor!
Tua voz sem corpo estará comandando,
Entre terra e água,
O aconchego das raízes tenras
A ordenação das pétalas nascentes.
À margem desta pedra que te cerca,
O rosto das flores inclinara sua narrativa:
Historia dos grandes luares,
Crescimento e morte dos campos,
Giros e musicas de pássaros,
Arabescos de libélulas roxas e verdes.
Conversareis longamente,
Em vossa linguagem inviolável.
Os anjos de mármore ficaram para sempre ouvindo:
Que eles também falam em silencio.
Mas a mim- se te chamar, se chorar-não me ouviras,
Por mais perto que venha, não sou mais que uma sombra
Caminhando em redor de uma fortaleza.
Queria deixar-te aqui as imagens do mundo que amaste:
O mar com seus peixes e suas barcas;
Os pomares com cestos derramados de frutos;
Os jardins de malva e trevo, com seus perfumes brancos e vermelhos.
E aquela estrela maior, que a noite levava na Mao direita.
E o sorriso de uma alegria que eu não tive,
Mas te dava.

Tudo cabe aqui dentro:
Vejo tua casa, tuas quintas de frutas,
As mulas deixando descarregar seirões repletos,
E os cães de nomes antigos
Ladrando majestosamente
Para a noite aproximada.
Range a atafona sobre uma cantiga arcaica:
E os fusos ainda vão enrolando o fio
Para a camisa, para a toalha, para o lençol.
Nesse fio vai o campo onde o vento saltou.
Vai o campo onde a noite deixou seu sono orvalhado.
Vai o sol com suas vestimentas de ouro
Cavalgando esse imenso gavião do céu.
Tudo cabe aqui dentro:
Teu corpo era um espelho pensante do universo.
E olhavas para essa imagem, clarividente e comovida.
Foi do barro das flores, o teu rosto terreno,
E uns liquens de noite sem luzes
Se  enrolaram em tua cabeça de deusa rústica.
Mas puseram-te numa praia onde os barcos saiam
Para perderem-se.
Então, teus braços se abriram,
Querendo levar-te mais longe:
Porque eras a que salvava.
E ficaste com um pouco de asas.
Teus olhos, porem, mediram a flutuação do caminho.
Por isso, tua testa se vingou de alto a baixo,
E tas pálpebras meigas
Se  cobriram de cinza.

O crepúsculo é este sossego do céu
Com nuvens paralelas
E uma ultima cor penetrando nas arvores
Até os pássaros.
É esta curva dos pombos, rente aos telhados,
Este cantor de galos e rolas, muito longe;
E, mais longe, o abrolhar de estrelas brancas,
Ainda sem luz.
Mas não era só isto o crepúsculo:
Faltam os teus dois braços numa janela, sobre flores,
E em tuas mãos o teu rosto,
Aprendendo com as nuvens a sorte das transformações.
Faltam teus olhos com ilhas, mares, viagens, povos,
Tua boca, onde a passagem da vida
Tinha deixado uma doçura triste,
Que dispensava palavras.
Ah, falta o silencio que estava entre nós,
E olhava a tarde, também.
Nele vivia o teu amor por mim,
Obrigatório e secreto.
Igual á face da natureza:
Evidente, e sem definição.
Tudo em ti era uma ausência que se demorava:
Uma despedida pronta a cumprir-se.
Sentindo-o, cobria minhas lagrimas com um riso doido.
Agora, tenho medo que não visses
O que havia por trás dele.
Aqui está meu rosto verdadeiro,
Defronte do crepúsculo que não alcançaste.
Abre o tumulo, e olha-me:
Dize -me qual de nós morreu mais.
Hoje! Hoje de sol e bruma,
Com este silencioso calor sobre as pedras e as folhas!
Hoje! sem cigarras nem pássaros.
Gravemente. Altamente.
Com flores abafadas pelo caminho,
Entre essas mascaras de bronze e mármore
No eterno rosto da terra.
Hoje.
Quanto tempo passou entre a nossa mutua espera!
Tu, paciente e inutilizada,
Contando as horas que te desfaziam.
Meus olhos repetindo essas tuas horas heróicas,
No brotar e morrer desta ultima primavera
Que te enfeitou.
Oh, a montanha de terra que agora vão tirando do teu peito!
Alegra-te, aqui estou,
Fiel, neste encontro,
Como se do modo antigo vivesses
Ou pudesse, com a minha chegada, reviver.
Alegra-te, que já se desprendeu as tabuas que te fecharam,
Como se desprendeu o corpo
Em que aprendeste longamente a sofrer.
E, como o áspero ruído da pá cessou neste instante,
Ouve o amplo difuso rumor da cidade em que continuo,
-tu, que resides no tempo, no tempo unânime!
Ouve-o relembra
Não as estampas humanas: mas as cores do céu e da terra,
O calor do sol,
A aceitação das nuvens,
O grato deslizar das águas dóceis.
Tudo o que amamos juntos.
Tudo em que me dispersarei como te dispersaste.
E mais esse perfume de eternidade,
Intocável e secreto,
Que o giro do universo não perturba.
Apenas não podemos correr, agora,
uma para a outra.
Não sofras, por não te poderes levantar
Do abismo em que te reclinas:
Não sofras, também,
Se um pouco do choro se debruça nos meus olhos,
Procurando-te.
Não te importes que escute cair,
No zinco desta humilde caixa,
Teu crânio, tuas vértebras,
Teus ossos todos, um por um...
Pés que caminham comigo,
Mãos que iam me levando,
Peito do antigo sono,
Cabeça do olhar e do sorriso...
Não te importes. Não te importes...
Na verdade, tu vens como eu te queria inventar:
E de braço dado desceremos por entre pedras e flores.
Posso levar-te ao colo, também,
Pois na verdade estás mais leve que uma criança.
- tanta terra deixaste porem sobre o meu peito!
Iras dizendo, sem queixa,
Apenas como recordação.
E eu como recordação, te direi:
-pesaria tanto quanto o coração que tiveste
O coração que herdei?
Ah, mas que palavras podem os vivos dizer aos mortos?
E hoje era o teu dia de festa!
Meu presente é buscar-te.
Não para vires comigo:
Para te encontrares com os que, antes de mim,
Viste buscar, outrora.
Com menos palavras, apenas.
Com o mesmo numero de lagrimas.
Foi lição tua chorar pouco,
Para sofrer mais.
Aprendi-a demasiadamente.
Aqui estamos, hoje.
Com este dia grave, de sol velado.
De calor silencioso.
Todas as estátuas ardendo.
As folhas, sem um tremor.
Não tens fala, nem movimento, nem corpo.
E eu te reconheço.
Ah, mas a mim, a mim,
Quem sabe se me poderás reconhecer!

Nenhum comentário:

Postar um comentário